Especialistas alertam para avanço da desinformação, pressão por diagnósticos e proliferação de clínicas isoladas

A Frente Parlamentar Mista para a Promoção da Saúde Mental realizou, na quinta-feira, dia 27, uma formação  com assessores e mandatos da Câmara dos Deputados para qualificar o debate legislativo sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA). O encontro reuniu pesquisadores, psicólogos, assessores parlamentares e pessoas autistas para discutir os impactos da desinformação, o crescimento acelerado de diagnósticos, a expansão de clínicas exclusivas e o papel do legislativo e das políticas públicas na garantia de direitos.

A atividade foi resultado de um Grupo de Trabalho interno da Frente, criado após a inclusão das palavras-chave autismo e transtorno do espectro autista na solicitação encaminhada à Consultoria Legislativa do Senado para a construção da matriz legislativa que monitora todos os projetos sobre saúde mental em tramitação no Congresso. A inserção dos novos termos ampliou em 44% o número de proposições identificadas na agenda do biênio 2025–2026, revelando a urgência do tema.

Na abertura, Sara Tavares (IEPS) apresentou os achados do Radar Político da Saúde – 2024, que analisou mais de duas mil proposições no Congresso e identificou que uma parcela significativa dos projetos relacionados à saúde repete, contraria ou ignora políticas já existentes, muitas vezes sem diálogo com o SUS ou com instâncias técnicas como a Conitec. Ela destacou que, no caso do TEA, o alto volume de projetos motivados por pressão social e desinformação tende a gerar soluções simplificadas, propostas desalinhadas de diretrizes clínicas, além de judicialização e expectativas irreais para famílias e gestores. O estudo integra o relatório da Frente Parlamentar da Saúde Mental, que registrou um crescimento de 40% nas proposições sobre saúde mental, e busca oferecer insumos técnicos para qualificar a atuação legislativa sobre o tema.

“Desinformação não é erro; é exploração da esperança”

Amanda Gregorio, do Infinis, tratou de um fenômeno que preocupa pesquisadores e famílias: a proliferação de terapias sem evidência, curas milagrosas e conteúdos enganosos sobre autismo nas redes sociais.

Um dos casos relatados foi o do MMS (Miracle Mineral Solution), produto vendido ilegalmente como “tratamento” para autismo, câncer e HIV, mas composto de dióxido de cloro; substância usada para branquear papel e limpar piscinas. Apesar dos alertas da FDA (Food and Drug Administration) nos Estados Unidos, o produto continuou circulando no Brasil em grupos de WhatsApp e Instagram. “O MMS não é só falso. Ele é perigoso e pode matar. Mas o que o sustenta é a esperança e a vulnerabilidade de famílias que procuram soluções rápidas para problemas complexos”, destacou Amanda.

Segundo dados apresentados, 48% de todo o conteúdo sobre autismo na América Latina é produzido no Brasil, tornando o país um polo de desinformação na região.

A explosão de diagnósticos: entre avanços, erros e pressões de mercado

Amanda Costa Andrada, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas de Saúde Mental (NUPSAM/UFRJ) , apresentou resultados preliminares de uma pesquisa nacional sobre a expansão dos diagnósticos de autismo.

O fenômeno, afirmam, tem pelo menos quatro camadas:

  • mudanças  nos critérios diagnósticos;
  • maior visibilidade e acesso ao tema;
  • mercado privado de avaliações aceleradas;
  • e pressões sociais amplificadas por redes sociais digitais.

A partir de 2019, houve um salto impressionante na produção legislativa sobre autismo no Congresso. De 1990 a 2018, foram apresentados apenas 20 projetos sobre o tema; entre 2019 e 2024, somaram-se 386 novas proposições.

“A proliferação diagnóstica não é um fenômeno espontâneo, é político, social e econômico. E precisa ser analisado com cuidado”, relatou Bárbara Costa, pesquisadora do NUPSAM.

A judicialização também explodiu: procuradorias estaduais relataram aumento de 600% nas demandas judiciais relacionadas ao autismo, muitas exigindo cargas horárias intensivas e serviços altamente especializados, frequentemente impossíveis de serem oferecidos pelos municípios.

Clínicas exclusivas: expansão veloz, desarticulada e sem sustentabilidade

Um dos pontos mais alarmantes apresentados pela pesquisa foi o mapeamento de clínicas públicas exclusivas para autistas, inauguradas em ritmo acelerado por governos municipais e estaduais.

Em estados já analisados, como o Espírito Santo, a discrepância é evidente:

  • 45 clínicas exclusivas,
  • contra apenas 4 CAPSi em todo o estado.

Essas clínicas, segundo a pesquisadora, surgem “sem diretrizes do SUS”, com padrões frágeis de financiamento e sem articulação com a rede existente. “Encontramos clínicas inauguradas em 2023 e, logo abaixo, postagens de famílias dizendo que o serviço fechou, ficou sem equipe ou tem fila de espera interminável. Isso não é continuidade de cuidado”, reforçou.

Os problemas mais comuns envolvem a alta rotatividade de profissionais, a precariedade dos contratos temporários, a falta de supervisão clínica, a padronização dos atendimentos sem individualização e a ausência de integração com a Atenção Básica, a Educação ou a Assistência Social.

Em uma cidade da Baixada Fluminense, uma clínica exclusiva para autistas está sendo construída ao custo de R$ 38 milhões, enquanto serviços essenciais para outras deficiências e saúde mental permanecem desfinanciados.

SUS, RAPS e Atenção Básica: o cuidado que funciona

Na atividade foi destacado que os equipamentos consolidados do SUS, especialmente a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a Atenção Básica, são os modelos capazes de oferecer cuidado integral, territorializado e intersetorial.

“Temos o maior sistema universal de saúde do mundo. Não faz sentido importar modelos estrangeiros baseados em seguro privado e terapias individualizadas.”

O alerta foi direcionado especialmente à tentativa de replicar práticas do modelo estadunidense, cuja lógica privatizada é incompatível com os princípios do SUS.

Especialistas reforçaram que:

  • meninas aprendem desde cedo a mascarar comportamentos;
  • mulheres são socialmente cobradas a serem “sociáveis” e “prestativas”;
  • autistas negras e periféricas sofrem múltiplas camadas de invisibilidade;
  • ferramentas de avaliação importadas não consideram diversidade cultural brasileira.

Diagnóstico é o começo, não o fim

A mesa enfatizou que o diagnóstico deve servir ao acesso a direitos, e não o contrário. O cuidado começa com acolhida, vínculo e continuidade, não com laudo. “Se o diagnóstico não melhora a qualidade de vida, ele falha em sua função social”, destacou Maria Carolina Roseiro conselheira do CFP

E, sobretudo:

“Cuidado não pode ser condicionado ao diagnóstico. Cuidado começa no território.”

Atenção às infâncias e adolescências: sujeitos invisíveis nas políticas públicas

Apesar do foco legislativo no autismo infantil, os pesquisadores alertam que crianças e adolescentes seguem pouco contemplados nas políticas públicas, que o Brasil possui pouquíssimos CAPSi em relação à sua população, que a política de deficiência carece de diretrizes específicas para as infâncias, que equipamentos culturais e de convivência raramente incluem crianças neurodivergentes e que a pandemia deixou marcas profundas no sofrimento psíquico juvenil. Os especialistas são unânimes em afirmar que para qualificar o cuidado de crianças autistas, é preciso qualificar o cuidado de todas as crianças.

Encerramento: legislativo como campo de proteção de direitos e combate à desinformação

A participação de Amanda Pascoal, representante da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) e pessoa autista, trouxe uma das falas mais potentes do encontro. Ela chamou atenção para a importância da autonomia, da comunicação alternativa e do reconhecimento da competência das pessoas autistas, especialmente das que não utilizam a fala oral. Criticou a prática histórica de presumir incapacidade e destacou como isso gera violações de direitos, sofrimento e invisibilidade. Amanda lembrou que a diversidade dentro do espectro é ampla e que nenhuma política pode se basear em um único modelo de cuidado, reforçando que adultos e idosos autistas seguem esquecidos nas políticas públicas. Sua fala emocionou a plateia ao denunciar que “ninguém é uma concha vazia”, defendendo o direito de todas as pessoas autistas, falantes ou não falantes, de serem respeitadas como sujeitos de desejo, pensamento, autonomia e cidadania.

As falas finais reforçaram que o papel da Frente não é apontar erros, mas qualificar o debate legislativo e fortalecer políticas que garantam cuidado digno, seguro e baseado em evidências.

Representantes das entidades presentes, entre as quais, Conselho Nacional de Saúde, Ministério da Saúde, Conasems, deixaram três apelos centrais:

1. Reforçar a RAPS e a Atenção Básica, com financiamento contínuo e sustentável.

    2. Enfrentar a desinformação, incluindo a produzida por “terapeutas” nas redes sociais.

    3. Defender políticas intersetoriais que integrem saúde, educação, assistência e cultura.

    O legislativo é um espaço poderoso para proteger direitos e fortalecer o SUS. Este encontro mostra como o conhecimento técnico e as experiências das pessoas autistas podem, e devem, orientar a formulação das políticas públicas.

    A atividade contou com a mediação de Filipe Asth, secretário executivo da Frente Parlamentar da Saúde Mental, que destacou que a FPSM encerrará o ano consolidando os dados apresentados e, a partir de 2025, aprofundará o debate sobre qualidade de serviços, formação profissional, combate à desinformação e fortalecimento do cuidado territorial no país.